CONTO DE ESCOLA
Tomei emprestado o nome deste blog do título de um conto de Machado de Assis. Além de querer homenagear o Bruxo, o nome se ajusta à tentativa de mostrar a manifestação do poético nas entrelinhas da escola através de contos, relatos, resenhas e imagens.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2020
terça-feira, 7 de janeiro de 2020
TENTAÇÃO
Uma professora magrinha volta da escola para a
quitinete num fim de tarde. Na praça, uma mulatinha, shortinho encardido e camiseta
apertada encosta nela e a encara. A menina, escoltada por outras crianças, vai
silenciosa, porém, pelo seu jeitinho arisco, é possível que esteja à caça de
alguma moeda.
A professora estica os passos, a garota também.
Atalha dentro da praça, ela atrás. Desacelera, que nada, a criatura diminui a
velocidade, estão a um cotovelo uma da outra. Aí ocorre a troca de olhares
inesperados, segundos apenas, mas o bastante para a professora ser fisgada
pelos olhos penetrantes da mulatinha.
Recém-chegada
à cidade para assumir o cargo numa escola pública, ela se põe a narrar para
dentro, para si mesma, as cenas de um filme sinistro que só ela via: “que
coisa, hein? A rua é um lugar perigoso, em especial para esta menininha parda,
um cara qualquer pode atraí-la com um doce, levá-la para casa, ou para um
terreno baldio e aí vai se saber o que pode rolar”. De repente, acorda como
estivesse à beira de um abismo: “caramba, é coisa do demo querendo me desviar
do caminho? Não, ela aparenta dez anos, é apenas uma criança”.
De pronto, se lança para frente, quase corre. Tronco
de árvore, carro e gente viram vultos. Gotas de suor brotam no seu pescoço, a
garganta arranha. A menina gruda nela. É jogo duro, marcação cerrada. A garota
nada diz. Apenas o sorrisinho nos lábios. A professora, agora quase grita por
dentro: “careço de livrar dela, de mim, dessa teia de aranha, sei lá”. E, na
destreza de bicho acuado, salta para dentro do primeiro boteco que surge. Ofegante
pede logo um refrigerante.
—A
criançada é da moça, pergunta na desconfiança o homem do bar.
—Não,
nada a ver comigo.
—Então,
fora daqui, não quero menor de idade no meu estabelecimento.
A professora já sentada, respira fundo. ‘Ufa, uh,
uh”. Abaixa os olhos e quando os levanta nem vestígio das crianças. Paira entre
mesas e cadeiras um silêncio de templo budista, o que enche os seus olhos de um
enorme alívio. Toma o refrigerante em goles cadenciados, olhar distante, vive
sozinha na quitinete alugada, mas por pouco tempo, tem planos de se casar no
final do ano com o noivo que deixara na capital. Um arrepio faz vibrar o seu
corpo. Enrola o tempo e, só depois, se levanta, acerta a conta e sai à rua de
uma cidade anoitecida.
Noutro dia ao chegar à escola, de longe avista
a menina brincando de se equilibrar nas pontas dos pés pelo topo do muro. Do
lado de fora as outras crianças torcem pela mulatinha. A professora olha a cena
de esguelha: “ avanço ou dou meia volta? Ah, como gostaria de me tornar
invisível nesta hora”. As pernas bambeiam, patina, ainda assim decide ir em
frente. Escapa de fininho, “essa fedelha não pode me ver”. Alguns metros a
separam da escada grande de acesso à escola. Súbito, a garotinha coloca as mãos
em concha para dobrar o som e só agora abre a boca — olha lá a tarada — o berro
da menina vindo da rua e do alto voa pelo pátio da escola, escancara portas e
janelas e, feito uma flecha venenosa, alcança uma professora magrinha já com os
pés na escadaria.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
terça-feira, 10 de dezembro de 2019
Em parceria com Arcelor, PROAC e Núcleo de Cinema de Campinas, um grupo de alunos da EE. JARDIM ALINE - Hortolândia/SP - produziu 100% um vídeo abordando a questão do machismo. O vídeo foi a cerejinha do bolo de uma oficina de criação de curtas ocorrida na escola durante o mês de novembro. Em breve o vídeo estará disponível neste blog.
domingo, 1 de dezembro de 2019
VOVÓ E O PASSARINHO
Sebaferreira
Sebaferreira
Parada diante da janela, a palma da mão estendida com os cincos dedos abertos contra gotas d’água que escorrem pelo vidro, vovó ausculta os ruídos do quintal. A figura da avó ali na janela, sem palavra ou gesto, apenas olhando, apressa a neta a ir se arrumar, a mãe vem visitá-la.
O gosto de olhar-se no espelho e encontrar-se com a beleza diferente da mulher que amadurece muito cedo murchava feito as flores que estampavam o vestido longo à espera no cabide. À vaidade feminina sobrepunha as agulhadas de uma ferida ainda aberta: a cama da própria mãe, o choro agoniado, a avó, surgindo feito uma flecha, a luta da senhorinha contra o padrasto bruto, o abuso não consumado, o murro dele em cima dos olhos da nona que a deixara quase cega, a fuga do criminoso e sua posterior prisão. A infância salva pelas mãos macias de uma avó que a arrancara das garras do animal. Que difícil arrumar na cabeça os cacos que restavam da imagem da mãe! A menina não vai trocar de roupa nem se embelezar.
— Que ave gritona!
A neta ameaça ir lá fora.
— Deixe-a, deixe-a, a avó a detém. Está procurando o filhote. Deve ter caído do ninho ontem, pois ouvi barulho. Voou até ficar escuro. É tocante. Hoje ela voltou a procurar pelo filhote desde cedo.
— Vovó, só de ouvir o barulho do pássaro, a senhora é capaz de descrever a cena em detalhes.
A avó mal conseguia enxergar. A neta tinha que lhe entregar nas mãos a caneca de leite e o pedaço de bolo de chocolate. Locomovia-se pela casa, que conhecia bem, mas não podia sair sozinha ao quintal.
A neta termina de lavar a louça do café.
—Ela não se afasta daquele lugar, o filhote deve estar por perto. Ah! A fragilidade da vida.
A neta se aproxima da janela que emoldura a chuva miúda, tão fina que só pode ser percebida quando se olha contra os pálidos raios de sol. O filhote pia entre os arbustos chamando pela proteção da mãe, um graúdo pica-pau da cabeça vermelha. O bicho gira sem parar o pescoço à procura de sua cria. De repente, bate asas e pousa rente ao alpendre, guiado pelos pios que o chamam. Vem aos pulinhos, olhando para os lados, desconfiado. O filhote responde, balançando as asas como se quisesse voar, ou andar para a frente em passos incertos. Tropeça, quase caindo. A mãe, cautelosa, oferece-lhe aconchego. O filhote sacode a cabeça, estremece as asas abertas, abre o bico e recebe o alimento, uma larva, talvez, arrancada à bicadas de oco de pau que regurgita para matar a fome da cria.
Toca a campainha.
A neta quer ir atender.
—Não abra a porta, não abra a porta, a avó a segura pelo braço. A sua mãe vem em busca de dinheiro para saldar a dívida com o advogado que soltou aquele homem promíscuo da cadeia. Nunca, nunca.
Puxa a neta para frente da janela e se posta atrás dela. As duas abrem os braços e entrelaçam as mãos. Fecham os olhos. Desatam a rir embaladas pela cantoria de tantos pássaros coloridos em revoada pelo quintal.
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