terça-feira, 7 de janeiro de 2020


TENTAÇÃO

Sebaferreira

Uma professora magrinha volta da escola para a quitinete num fim de tarde. Na praça, uma mulatinha, shortinho encardido e camiseta apertada encosta nela e a encara. A menina, escoltada por outras crianças, vai silenciosa, porém, pelo seu jeitinho arisco, é possível que esteja à caça de alguma moeda.
A professora estica os passos, a garota também. Atalha dentro da praça, ela atrás. Desacelera, que nada, a criatura diminui a velocidade, estão a um cotovelo uma da outra. Aí ocorre a troca de olhares inesperados, segundos apenas, mas o bastante para a professora ser fisgada pelos olhos penetrantes da mulatinha.
 Recém-chegada à cidade para assumir o cargo numa escola pública, ela se põe a narrar para dentro, para si mesma, as cenas de um filme sinistro que só ela via: “que coisa, hein? A rua é um lugar perigoso, em especial para esta menininha parda, um cara qualquer pode atraí-la com um doce, levá-la para casa, ou para um terreno baldio e aí vai se saber o que pode rolar”. De repente, acorda como estivesse à beira de um abismo: “caramba, é coisa do demo querendo me desviar do caminho? Não, ela aparenta dez anos, é apenas uma criança”.
De pronto, se lança para frente, quase corre. Tronco de árvore, carro e gente viram vultos. Gotas de suor brotam no seu pescoço, a garganta arranha. A menina gruda nela. É jogo duro, marcação cerrada. A garota nada diz. Apenas o sorrisinho nos lábios. A professora, agora quase grita por dentro: “careço de livrar dela, de mim, dessa teia de aranha, sei lá”. E, na destreza de bicho acuado, salta para dentro do primeiro boteco que surge. Ofegante pede logo um refrigerante.
—A criançada é da moça, pergunta na desconfiança o homem do bar.
—Não, nada a ver comigo.
—Então, fora daqui, não quero menor de idade no meu estabelecimento.
A professora já sentada, respira fundo. ‘Ufa, uh, uh”. Abaixa os olhos e quando os levanta nem vestígio das crianças. Paira entre mesas e cadeiras um silêncio de templo budista, o que enche os seus olhos de um enorme alívio. Toma o refrigerante em goles cadenciados, olhar distante, vive sozinha na quitinete alugada, mas por pouco tempo, tem planos de se casar no final do ano com o noivo que deixara na capital. Um arrepio faz vibrar o seu corpo. Enrola o tempo e, só depois, se levanta, acerta a conta e sai à rua de uma cidade anoitecida.
Noutro dia ao chegar à escola, de longe avista a menina brincando de se equilibrar nas pontas dos pés pelo topo do muro. Do lado de fora as outras crianças torcem pela mulatinha. A professora olha a cena de esguelha: “ avanço ou dou meia volta? Ah, como gostaria de me tornar invisível nesta hora”. As pernas bambeiam, patina, ainda assim decide ir em frente. Escapa de fininho, “essa fedelha não pode me ver”. Alguns metros a separam da escada grande de acesso à escola. Súbito, a garotinha coloca as mãos em concha para dobrar o som e só agora abre a boca — olha lá a tarada — o berro da menina vindo da rua e do alto voa pelo pátio da escola, escancara portas e janelas e, feito uma flecha venenosa, alcança uma professora magrinha já com os pés na escadaria.