TENTAÇÃO
Uma professora magrinha volta da escola para a
quitinete num fim de tarde. Na praça, uma mulatinha, shortinho encardido e camiseta
apertada encosta nela e a encara. A menina, escoltada por outras crianças, vai
silenciosa, porém, pelo seu jeitinho arisco, é possível que esteja à caça de
alguma moeda.
A professora estica os passos, a garota também.
Atalha dentro da praça, ela atrás. Desacelera, que nada, a criatura diminui a
velocidade, estão a um cotovelo uma da outra. Aí ocorre a troca de olhares
inesperados, segundos apenas, mas o bastante para a professora ser fisgada
pelos olhos penetrantes da mulatinha.
Recém-chegada
à cidade para assumir o cargo numa escola pública, ela se põe a narrar para
dentro, para si mesma, as cenas de um filme sinistro que só ela via: “que
coisa, hein? A rua é um lugar perigoso, em especial para esta menininha parda,
um cara qualquer pode atraí-la com um doce, levá-la para casa, ou para um
terreno baldio e aí vai se saber o que pode rolar”. De repente, acorda como
estivesse à beira de um abismo: “caramba, é coisa do demo querendo me desviar
do caminho? Não, ela aparenta dez anos, é apenas uma criança”.
De pronto, se lança para frente, quase corre. Tronco
de árvore, carro e gente viram vultos. Gotas de suor brotam no seu pescoço, a
garganta arranha. A menina gruda nela. É jogo duro, marcação cerrada. A garota
nada diz. Apenas o sorrisinho nos lábios. A professora, agora quase grita por
dentro: “careço de livrar dela, de mim, dessa teia de aranha, sei lá”. E, na
destreza de bicho acuado, salta para dentro do primeiro boteco que surge. Ofegante
pede logo um refrigerante.
—A
criançada é da moça, pergunta na desconfiança o homem do bar.
—Não,
nada a ver comigo.
—Então,
fora daqui, não quero menor de idade no meu estabelecimento.
A professora já sentada, respira fundo. ‘Ufa, uh,
uh”. Abaixa os olhos e quando os levanta nem vestígio das crianças. Paira entre
mesas e cadeiras um silêncio de templo budista, o que enche os seus olhos de um
enorme alívio. Toma o refrigerante em goles cadenciados, olhar distante, vive
sozinha na quitinete alugada, mas por pouco tempo, tem planos de se casar no
final do ano com o noivo que deixara na capital. Um arrepio faz vibrar o seu
corpo. Enrola o tempo e, só depois, se levanta, acerta a conta e sai à rua de
uma cidade anoitecida.
Noutro dia ao chegar à escola, de longe avista
a menina brincando de se equilibrar nas pontas dos pés pelo topo do muro. Do
lado de fora as outras crianças torcem pela mulatinha. A professora olha a cena
de esguelha: “ avanço ou dou meia volta? Ah, como gostaria de me tornar
invisível nesta hora”. As pernas bambeiam, patina, ainda assim decide ir em
frente. Escapa de fininho, “essa fedelha não pode me ver”. Alguns metros a
separam da escada grande de acesso à escola. Súbito, a garotinha coloca as mãos
em concha para dobrar o som e só agora abre a boca — olha lá a tarada — o berro
da menina vindo da rua e do alto voa pelo pátio da escola, escancara portas e
janelas e, feito uma flecha venenosa, alcança uma professora magrinha já com os
pés na escadaria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário